" Seu eu / da estante

terça-feira, 17 de abril de 2012

Seu eu


No meu princípio só havia dia, no meu fim, só há noite. Andava roubando sonhos, não dormia, bocejava pesadelos, não ouvia a chuva, não a sentia me molhar, não a via riscar vidraças e arranhar asfaltos.
Não lembro o que me passava pela cabeça, se é que eu pensava. Em meus devaneios, atravessei incontáveis noites, repousei imperceptíveis dias e meu único alento era o travesseiro. Muitas vezes passei a noite em claro, num escuro que cegava. Contava lágrimas que caíam lentamente. Acontecia... Acontecia constantemente, numa frequência perturbadora.
Como se fosse hoje, lembro que tudo começava, de novo, e eu, esperançosa de que iria de fato esquecer, e estava esquecendo, você me veio e novamente me calou.
Sempre me dizendo que lições deveria lhe dar, que amor deveria amar, sofrimento que deveria sofrer. Te pedi que se afastasse, que nos meus olhos não mais olhasse, que em minha fraqueza não fracassasse. Na angústia estrépita que eu te sentia, uma amargura árdua estremecia. Nunca soube e nem podia, só tentava resistir, desistir.Superava teus encantos, mas quando já estavas partindo uma voz indecisa pedia pra ficar.
Éramos somente nós, o meu erro foi te retorcer num nó, nó de engano, na mentira do caráter inexistente, num medo que chorava, nas lembranças de um tempo bom que me sorria, de noite, de dia.
No teu espetáculo lamentável de um silencioso sentimento, tivesse platéia para a minha desgraça, eu nunca quis te dizer nunca e quando tentei, recolhesse todos os demônios e todas as tentações me perderam. Subimos nos mais elevados degraus, em passos chocados de tuas pisadas que estremeciam no carpete junto aos teus gritos esporádicos. E então, em momentos assim, engolia toda dor, como desencanto de amor que me punia severamente o profundo.
O inatingível sentimento gritado para o infinito que sempre existiu entre nós. E você, depois dos teus surtos superciliosos, me sangravam, perfuravam todas as veias e desse sangue lavava-me em lágrimas.
Não tenho certeza de quem foste, de quem és, nem se ainda vives nesse mundo só seu, de personagens momentâneos, em que apenas tu, artista, é o centro. Não me coube, não mais me caberá, pois daquele mal que um dia me matou em nós dois, saiba que se ainda não o fez, um dia te matará. Eu, ainda hoje, venho me arrastando sem vã coragem, coragem essa que nunca tive, disfarçava-se na vontade do meu órgão inquieto.
Reneguei inúmeras vezes o teu veneno letal, envenenei-me também diversas, em lápide. Se me viesses agora, já não estaria à tua espera, teu túmulo em mim está vazio, e foi só o que restou, um vazio. O teu corpo e alma (se é que tivesses) ninguém nunca viu.
De toda lembrança que deixo no papel intuindo esquecer de lembrar, do meu soprano em êxtase engasgado, tenho o miserável azar de ter que me abandonar depois que te abandonei, ter que me odiar depois que te odiei, em consequência te amar sendo que nunca me amei e naquela morte definhar já que nessa vida definhei.

Nenhum comentário

Postar um comentário

© da estante
Maira Gall